terça-feira, 3 de maio de 2016

Uma noite sem fim.

Estávamos em nossa cabine depois de termos jantado e dançado um pouco com um casal de italianos que conhecemos durante a ceia da primeira noite. Fomos deixar umas coisas no quarto e voltar para encontrar com eles na festa "anos 60" que estava começando no terraço em volta da piscina. Não gostei nada de ver aquele envelope deslizando no chão, passado por debaixo da porta. "To Mr. José M. C. Costa, cabine L30".

Senti que não era boa coisa. Não tinha deixado nenhum assunto pendente no Brasil e já tinha falado com a minha filha Marina pelo telefone antes de embarcarmos em Gênova. Depois de um suspiro e já com um nó na garganta que comprimia o ar que respirava, abri: era um fax da Merit assinado pela secretária pedindo para ligar para minha irmã Laura ou para a Celeste minha cunhada. URGENTE!!!!! Aquelas maiúsculas, com tantas exclamações na sequência, soaram como um grito emitido horas antes a muitas milhas de distância e que, depois de atravessar o atlântico, agora ecoava na cabine L30. Um eco silencioso que entrou não pelos meus ouvidos, mas pelos olhos, desencadeando em meu cérebro uma corrente de pensamentos desordenados.

A primeira pessoa em que pensei foi na Marina que tinha ficado em casa com a dona Chica. Mas...não, tinha falado com ela um dia antes, prometeu dormir na avó todos os dias até terminar as provas e embarcar para o intercâmbio.

Aquele fax ficou gritando na minha mão. Enquanto segurava a mensagem e pensava no que fazer, conclui que não podia ser nada relacionado com a Marina. Não num fax enviado por uma secretária, pedindo para eu ligar urgente para a minha irmã ou minha cunhada. Era muita volta.

Ficamos em silêncio, eu e a Rose, olhando um para o outro, mudos (mais tarde ela me confessou que naqueles segundos ficou com medo de que tivesse acontecido alguma coisa com a mãe dela ou com o irmão e não quiseram preocupá-la por causa do bebê – estava de dez semanas – por isso mandaram o fax no meu nome...mas também isso parecia improvável).

Pensei imediatamente no meu pai. A gente ainda não esquecera as duas semanas que ele havia ficado internado meses antes, a maior parte do tempo na UTI. Com as mãos já meio úmidas dobrei o papel e comecei a pensar no pior. Porque, claro, só tentariam falar conosco no meio do oceano se acontecesse o pior. Fomos até ao balcão de informações e nos disseram que a sala de rádio, única forma de comunicação no navio, fechava às oito da noite. Expliquei que era uma emergência com o meu pai (agora que estou colocando no papel a memória daqueles intermináveis minutos, lembrei que disse à moça da recepção, instintivamente, que se tratava de uma "emergência com o meu pai..

Ela nos indicou as escadas e pediu para subirmos um lance, onde ficava a sala de rádio, que uma pessoa iria até lá para nos ajudar. Repeti para um rapaz de branco, muito educado e sabedor da urgência do assunto, que eu precisava ligar para o Brasil. Na primeira tentativa para a casa da minha cunhada, deu ocupado. Na segunda e na terceira também. A cada vez minha certeza da gravidade da notícia era maior. Resolvei ligar para a minha secretária.

Era meia noite e meia no meu relógio, sete e meia da noite no Brasil, cedo ainda para o ritmo da agência e, portanto, com muitas chances de haver alguém que me dissesse alguma coisa. "– Mônica, o que aconteceu?" perguntei com a voz trêmula e em soluços, já sabendo a resposta. "– Cascão...foi seu pai...meu Deus não era eu que tinha que te dar esta notícia...foi seu pai Cascão, ele faleceu hoje por volta das três da tarde."

Foi como se uma barragem tivesse se rompido dando vazão a uma enxurrada de lágrimas. "– Eu não queria te dar esta notícia – disse ela, mas eu tinha que passar o fax, seu irmão e sua irmã acharam que seria muito pior esperar você voltar, o choque ia ser pior".

Desliguei rápido e liguei para a minha cunhada, já com a cabeça explodindo "– Celeste, o que aconteceu?", como se precisasse que alguém me confirmasse para acreditar. Ela manteve a voz firme: "– Seu pai faleceu hoje à tarde, Cascão. Ele ficou ruim de novo, sem ir no banheiro, com o intestino preso, aí levaram ele pro hospital...". Não havia necessidade de ouvir mais nada, os soluços dela se misturaram aos meus, ouvi a Rose dizer "– Oh, meu Deus!" e daí para a frente só parei de chorar na parte em que minha cunhada disse que minha irmã e minha mãe foram visitá-lo e estavam com ele quando deu o último suspiro.

Morreu tranquilo, em paz, sem falar nada, disse-me ela. Confirmei se tinha certeza de que minha mãe e a Laura estavam lá mesmo. " – Sim, e só saíram do quarto a pedido do médico, que logo depois confirmou a morte".

Saber que estavam com ele me deixou mais aliviado. Eu estava no meio do mediterrâneo, longe, muito longe de casa. E acabara de perder meu pai sem ter tido ao menos a oportunidade de olhar para ele, segurar sua mão pela última vez e dizer quanto o amava. Mas ele não esteve sozinho. Agradeci a Deus.

Tinham decidido que o enterro seria no dia seguinte. Comecei a pensar num jeito de voltar para casa. Descer no primeiro porto, pegar o primeiro avião e voltar, quem sabe desse tempo. A mente é fantástica, resolve tudo, mesmo o improvável. O provável é que nem houvesse um aeroporto na próxima cidade onde o navio ia atracar. O provável é que todos estivessem querendo enterrar meu pai o mais rapidamente possível para diminuir o sofrimento da minha mãe.

O rapaz que nos ajudou com a ligação balbuciou alguma coisa como "meus sentimentos" e eu e a Rose descemos para a cabine. Sentamos num sofazinho e começamos a rezar em voz alta e a chorar. Rezar e chorar, rezar e chorar...

Porquê ele tinha escolhido aquela aquele dia, aquela hora, justo quando a gente estava longe e sem poder voltar?

Eu só me perguntava porquê, porquê, porquê? Quando cansei de perguntar e de chorar, pedi à Rose que me deixasse ir até o convés. Lá fora, no alto do navio, o mais perto possível do céu, talvez ele me ouvisse e respondesse. Precisava ficar sozinho, precisava falar com ele, precisava entender. Ela concordou, respeitando a minha dor, mas naturalmente preocupada comigo. E eu com ela e com a filha que carregava na barriga. Atravessei todos os imensos e estreitos corredores do navio em passos lentos, cambaleantes, enquanto a música, o barulho dos copos, o riso e as gargalhadas dos turistas compunham uma trilha sonora que em outra situação não me pareceria tão macabra.

Finalmente subi a última meia dúzia de degraus da escada que dava para o convés, sentei em uma das muitas cadeiras azuis e brancas e fiquei olhando para as estrelas no céu e depois para o brilho da lua que formava um extenso tapete prateado sobre as águas calmas do oceano. Ventava um pouco. E perguntei de novo, agora a Deus, porquê ele foi levar meu pai justo quando eu estava longe e impossibilitado de fazer qualquer coisa por ele, ainda que fosse vê-lo uma última vez?

Não esperei resposta, comecei novamente a rezar, repetindo as orações em voz alta e torcendo para que não aparecesse alguém da tripulação me pedindo para descer porque eu não iria obedecer e também não tinha a menor disposição para explicar a quem quer que fosse o que estava fazendo ali à uma e meia da manhã, sozinho, enquanto todos estavam se divertindo no andar de baixo.

Muitas coisas me passaram pela cabeça: que a Rose talvez tivesse razão ao dizer, no quarto, que a vida estava querendo nos mostrar - a nós que vivemos querendo ter o domínio sobre tudo - que não temos domínio sobre nada; que o senhor Adérito, chegada a sua hora, resolveu partir sem nos dizer adeus para poupar a nora, evitar que ela passasse nervoso e prejudicasse seu neto; que a existência cobra uma morte para cada vida que se põe a caminho... e muitas outras coisas que não registrei.

Continuei a chorar e a orar até que uma grande ventania começou a arrastar as cadeiras de um lado para o outro, num balé lindo mas assustador, como linda e assustadora é a natureza, a vida e a morte.

O navio, que até aquele momento mais parecia um hotel cravado no chão, de tão tranquilo, também começou a balançar pra lá e pra cá. Fiquei com medo. Lembrei da Rose sozinha com a bebê dentro da barriga, as duas dentro do quarto, o quarto dentro do navio, o navio dentro do mar. Desci.

Na volta passei por uma sala de leitura, vazia como todas as outras, onde havia uma tv ligada exibindo apenas o logotipo da TVE e captando o sinal da rádio nacional de Espanha. Parei instintivamente na frente do televisor e pude ouvir trechos de um daqueles programas que, no silêncio da madrugada, tratam de ajudar as pessoas que estão sozinhas e sofrendo por alguma razão. O apresentador falava suavemente sobre uma técnica de relaxamento que, através de parapsicologia, podia nos colocar em contacto com seres queridos que tivessem morrido.

Explicou como fazer esse exercício na frente de um espelho...e eu ali ouvindo. Pensando no meu pai e ouvindo. Depois tocou uma música muito bonita e uma apresentadora atendeu um telefonema de uma ouvinte de Sevilha que havia perdido o marido fazia seis meses e queria ler uma mensagem que havia escrito para ele. A moça do programa consolou-a dizendo que duas pessoas que se amavam tanto não podiam estar tão longe assim e que onde estivesse ele estaria ouvindo e eles iriam se encontrar um dia.

Fui embora ouvindo o relato de outra mulher cuja voz um pouco anasalada foi se perdendo no ar atrás de mim...

Ao chegar ao quarto deitei-me ao lado da Rose e, cansado, adormeci. E sonhei. Como nunca havia sonhado em minha vida. Sonhei que fui até o velório e vi meu pai. Não deitado num caixão, frio e sem vida, mas sentado num banco que dava a volta na sala, ao lado das outras pessoas. Agachei-me na frente dele e segurei suas mãos, repetindo-lhe a pergunta ainda sem resposta: porquê resolveu ir embora daquele jeito, sem nos dar nenhuma chance?

Ele estava mais novo, vestia uma capa, calçava botas e, estranhamente, dava umas baforadas num charuto, vicio que nunca teve. Sua pele era branca e tinha um brilho especial, a ponto de tudo em volta dele parecer opaco e fora de foco. Não respondeu. Apenas sorria, com um sorriso largo que ele tinha quando estava muito alegre ou alguma coisa o divertia muito. Era como se tivesse acabado de me pregar uma peça. Mas eu sentia amor em seu olhar e alegria por me ver. Passou a mão suavemente pelo meu rosto. Em seguida levantou-se, com uma agilidade que eu aprendi a conhecer bem em outros tempos, e se esgueirou por um corredor, como se levitasse entre as pessoas. Fui atrás dele gritando "– pai, pai!" mas ele, literalmente, desapareceu.

Um pouco triste, mas em paz, dirigi-me a outra sala ao lado e me sentei.

Sabia que no centro daquela sala havia um caixão e que todos ali estavam velando um corpo, mas eu não o via. Chegaram uns amigos, começaram a falar comigo e a dizer aquelas coisas que se dizem aos que ficam e acordei. Como também nunca havia acordado antes. Era como se tivesse sido arrancado à força do sonho, uma dor física na altura do coração e um pouco suado.

Sentia-me mais cansado do que quando adormeci. Mas tinha uma certeza: eu acabava de me despedir dele, no único tempo e espaço onde o tempo e o espaço não contam. Me senti melhor, olhei para a Rose ao meu lado, lembrei dos sonhos que me contou ter com o pai dela depois que morreu, e voltei a dormir, na esperança de encontrar-me novamente com o meu. Claro que em vão.

O dia seguinte amanheceu ensolarado. Fomos acordados pelo alto-falante avisando que, após a liberação das autoridades portuárias, poderíamos descer à terra. Contei para a Rose o que havia sonhado e falamos um pouco sobre o que vi e senti na noite anterior. Ela lembrou também que um dia antes, segunda-feira (enquanto meu pai estava no hospital) estávamos em Capri, o primeiro lugar onde o navio parou. A ilha era linda, o dia estava lindo, vimos lugares lindos, mas a gente não estava bem. Ela disse várias vezes que não estava bem. Que estava triste por estar num lugar tão maravilhoso e não estar conseguindo aproveitar como gostaria. Eu pensei que era por causa do calor e da bebê.

Fomos com essas lembranças e esses pensamentos, em silêncio, para o café da manhã. Mais ou menos às oito desembarcamos e saímos a caminhar pela cidade, sozinhos, sem guia e sem excursão.

Estávamos em Palermo. A cidade pareceu-me feia, mas não falei nada. Andamos um pouco mais – todo porto é feio – quem sabe mais para o centro, longe dali. Carros e mais carros, centenas de vespas zunindo seus escapamentos, motoristas em carros amassados xingando uns aos outros (entendi melhor a influência italiana sobre São Paulo), filas duplas, motonetas em cima das calçadas, ruelas estreitas, escuras, prédios velhos, escuros, confusão e calor. Todos os carros estacionados, cobertos por uma densa camada de pó, pareciam ter sido abandonados há muito por seus donos. Andamos umas duas horas, eu fazendo as contas do fuso horário e esperando que amanhecesse no Brasil para telefonar, saber se tinham adiado o enterro, já que eu falei que tentaria voltar. A Rose cansada, passando mal com o calor e impressionada com a paisagem da cidade. Mas também não falou nada. Paramos para comprar água e eu tomei um expresso. Andamos mais um pouco procurando a central telefônica. Encontramos uma às onze e meia da manhã, sete e meia no Brasil. Liguei primeiro para o Sr. De La Via, amigo de tantas horas e meu orientador espiritual, já que eu não sabia o que fazer. Ele disse que já tinha falado com a minha família, que o enterro ia ser mesmo ao meio dia, que todos em Cafh já estavam fazendo as orações que sempre fazemos e se estendem por sete dias quando um membro ou alguém da família falece e que não adiantava eu voltar porque em relação ao fato em si eu não podia fazer mais nada e a única coisa que realmente eu podia fazer era orar e me recolher o mais possível neste dia de terça-feira 17 de junho dia do enterro do meu pai.

A seguir liguei para tentar pegar meu irmão em casa. Minha cunhada atendeu e disse que todos estavam no velório no Cemitério do Morumby e que o enterro ia ser ao meio dia. Repetiu que era besteira eu voltar não ia chegar a tempo e não havia nada que eu pudesse fazer. Liguei para a avó da Marina para falar com ela mas tinha acabado de sair. Ia fazer prova e depois para o enterro do avô. Ela falou que queria que eu estivesse lá.

A impotência doeu quase tanto como a perda. Me convenci que não havia nada mesmo que eu pudesse fazer. Saímos da telefônica e caminhamos mais uma meia hora até o navio. Na noite anterior, depois de descer do convés, tinha escrito uma mensagem. Passei logo cedinho por fax para minha secretária e para para um aparelho que mantinha em casa. Recomendei desesperadamente que entregassem o fax à minha filha Marina para que o lesse durante o velório ou no momento do enterro. Foi a única maneira que encontrei de estar presente e de juntar minha alma e minha dor à de todos os que estivessem acompanhando meu pai.

No quarto voltamos a chorar e fiquei o dia inteiro sem sair, ver ou falar com ninguém.

À noite fomos jantar. Pedi à Rose que não contasse nada ao casal de amigos italianos nem ao pessoal da mesa, pra evitar o mal estar. Eles perguntaram porquê a gente não voltou para a festa na noite dos anos 60 e a gente deu uma desculpa qualquer.

Hoje, quarta feira, 18 de junho, o navio parou cedinho na Tunísia e fomos com o grupo conhecer a cidade. Voltamos ao meio dia, almoçamos e enquanto espero para tentar ligar novamente para o Brasil – preciso falar com a Marina e pelo menos com a minha irmã ou meu irmão – me deu vontade de escrever, lembrar cada segundo e registrar tudo neste computador da Rose, para não esquecer nunca mais o que aconteceu na noite de ontem, uma noite sem fim.

Agora eu vou lá em cima tomar um Jack Daniels e fazer um brinde a ele, que continua vivo em mim, em nós.

Em algum lugar do oceano, entre a costa da Africa e da Espanha, 20:30 horas do dia 18 de junho de 1997.


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